
Com 100 anos acabados de fazer, João Rodrigues Pires continua a ir todos os dias para O Mundo dos Livros, a histórica loja do Chiado (numa esquina da Rua da Misericórdia) onde vende gravuras e muitas raridades literárias em estantes cheias de memórias e recordações.
Foi lá que recebeu a Lisboa Secreta e nos contou tudo sobre uma vida à volta dos livros, que o fez conhecer ilustres das artes, milionários e presidentes. Uma homenagem em jeito de entrevista ao decano dos alfarrabistas lisboetas.
Lisboa Secreta (LS): Há quantos anos é alfarrabista?
João Rodrigues Pires (JRP): Há 83 anos, desde 1936. Comecei num vão de escada na Rua Garrett e em pouco tempo já sabia mais de livros que o meu patrão. Depois também trabalhei na Bertrand e na Sá da Costa e ainda estive a dirigir a Livraria Pacheco antes de me estabelecer em 1945 noutro vão de escada, na Academia dos Amadores de Música, com 200 livros e 300 escudos no bolso. Logo ali começaram a aparecer pessoas a comprar, a comprar, a comprar, o que me permitiu arranjar dinheiro para alugar esta loja, em 1951. Chamei-lhe “O Mundo do Livro” porque esta era a Rua do Mundo, devido a um jornal famoso da altura, “O Mundo”, que aqui estava instalado.
LS: Que segredos estas paredes guardam desde então?
JRP: Aqui aconteceu muita coisa interessante. Por exemplo, uma vez servi de intermediário na compra do primeiro livro impresso em Portugal, “O Tratado da Confissão”. Custou 400 contos a um banqueiro importante, o Miguel Quina, mas ele não queria ser identificado por isso mandou cá uma empregada. Quando se soube do negócio, mandaram um carro da Polícia Judiciária a minha casa e interrogaram-me duas vezes, mas eu nunca divulguei a identidade do comprador. Ainda meteram ao barulho o antigo diretor da Companhia de Diamantes de Angola, mas depois de 10 horas de interrogatório o banqueiro lá ligou a dizer que tinha sido ele a comprar. Só nessa altura é que me libertaram.
LS: E nunca teve problemas com a PIDE?
JRP: Uma vez denunciaram-me, dizendo que eu vendia livros proibidos. Fui lá chamado e perguntaram-me “qual é o seu ideal?”. E eu respondi “sou livreiro”. Mas continuaram a insistir, dizendo que queriam dizer ideal político. E eu disse “acham que posso ter um ideal político contrário ao vosso”? Enfim, na altura também havia milhares de livros proibidos. Até se proibia um dicionário francês-russo.

LS: Além de banqueiros, que outras personalidades passaram por aqui?
JRP: Por exemplo, o Humberto Saboia, rei de Itália, que estava exilado em Portugal. E também vários Presidentes da República. Das artes, destaco o Aquilino Ribeiro, que vinha cá muitas vezes.
LS: Aos 100 anos, o que é que o faz trabalhar todos os dias?
JRP: Para me entreter a atender os clientes. Mas tenho pena que hoje em dia não haja grandes colecionadores ou, pelos menos, eles não vêm cá. A maioria das pessoas passa por aqui, dá meia volta e sai. Não se interessam por nada, só querem saber dos telemóveis. Antigamente as pessoas percebiam, conheciam, sabiam. Hoje, os que revelam algum interesse… não têm dinheiro.
LS: Qual é o seu local favorito de Lisboa?
JRP: O sítio mais bonito de Lisboa fica aqui perto. É o miradouro de São Pedro de Alcântara, que é visitado todos os dias por muita gente. Mas também gosto muito da Baixa de Lisboa.
LS: E como é que imagina Lisboa daqui a 100 anos?
JRP: Quando era miúdo, tinha talvez uns sete anos, vi um filme que se chamava “Metropolis”. Nesse filme a máquina fazia tudo e já não havia emprego para ninguém e então decidiram destruir todas as máquinas. Não me admira nada que isso venha a acontecer no nosso futuro porque a máquina está a tirar trabalho e conhecimento a tudo e todos.
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Foto de capa: Ringo Giacobelis