Não há nada mais português do que a saudade e o fado. E estes poemas são sobre isso.
O desafio foi lançado por António Carlos Cortez, poeta e professor, que escreveu um poema sobre Lisboa em tempos de pandemia e enviou a Maria do Rosário Pedreira, que aceitou e respondeu à desgarrada.
Maria do Rosário Pedreira é poetisa, letrista, escritora, cronista do DN e também editora da Leya e respondeu com um fado. Os poemas foram partilhados no Facebook e o desafio foi lançado a outros poetas e escritores.
«Fado da Lisboa doente»
Quem a viu e quem a vê,
Esta Lisboa onde moro.
Mas não perguntem porquê.
Pois, se explicar, ainda choro.
Na padaria da esquina
Já só se entra às pinguinhas
E até se tornou rotina
Estar a um metro das vizinhas.
Há fila para a farmácia,
Fila pró supermercado;
E nem é precisa audácia
Para se andar mascarado.
Nas traseiras do meu prédio
Uma jovem namorada
Tenta combater o tédio
Com uma videochamada.
A uns metros de distância
Parte um atleta em corrida;
Para manter a elegância
Há que fazer pela vida.
De resto, com a emergência,
Ficam as ruas desertas.
Podemos conferir a ausência
Pelas janelas abertas.
Está tudo em teletrabalho,
A olhar p’ró monitor.
Mas não encontro o atalho
Para vos falar de amor.
Dar beijos é só por escrito,
Que o vírus mata a valer.
E está tudo tão aflito
Que nem apetece ler.
Ai Lisboa, que saudade
Da tua irrequietude.
Mesmo que, em boa verdade,
Mais importante é a saúde.
Que tudo passe ligeiro,
E não afecte o meu ninho.
Da Praça do Areeiro
Envio um tele-beijinho!
A ideia foi bem recebida e rapidamente começaram chegar novos poemas sobre uma Lisboa deserta e vazia. Manuel Alegre foi um dos poetas a criar algo especial sobre estes tempos estranhos. Chamou-lhe “Lisboa Ainda“.
Tal como Manuel Alegre, também Luís Filipe Castro Mendes, antigo ministro da Cultura, escreveu sobre Lisboa.
«O Autor, de quarenta, tem saudades das vistas de Lisboa»
Memórias da Lisboa que não vejo
senão do quadradinho da janela
que dá para Monsanto e não pró Tejo
e nenhuma visão do mar revela.
Memória de um só largo, de uma rua,
que possa consolar meu coração.
Memória da beleza que foi sua
e se chama Lisboa num pregão.
Que já não há pregões, nem nas cantigas?
Imaginamos nós a terra amada
tão leve nas suaves raparigas
quão firme nas mulheres desejadas?
Memória de Lisboa, tão mulher
que se menos a vemos mais nos quer!
A desgarrada tornou-se algo tão especial que muitos aderiram. Entre poetas reconhecidos e outros menos, a vontade de escrever sobre Lisboa em tempos de isolamento estendeu-se para lá do imaginável. Continuam a chegar poemas e algumas pessoas vão soltando algumas quadras nos comentários. Na página de Facebook de Maria do Rosário Pedreira podes ir acompanhando os poemas que vão sendo partilhados.
De uma forma ou de outra, esta desgarrada de fado forma um retrato da nossa cidade em tempos estranhos. Algo que pode vir a ser perpetuado no futuro em forma de livro, quem sabe.
A literatura, tal como a música e a arte em geral, é sempre uma boa forma de aquecer o coração e alimentar a alma, especialmente em alturas mais difíceis. Faz-nos acreditar que tudo é possível.
Foto de capa: @mylisbontrip